Direito Civil, Processo Civil, Tributário e Bancário

Advogado

07/04/2023

O confisco das cadernetas de poupança: reflexos e implicações atuais

    Em março de 1990, o Brasil viveu um dos momentos mais traumáticos de sua história econômica: o confisco das cadernetas de poupança, implementado pelo então presidente Fernando Collor de Mello. Essa medida, que afetou milhões de brasileiros, ainda hoje reverbera, gerando debates sobre segurança jurídica e a proteção dos direitos dos poupadores.

    O plano econômico tinha como objetivo principal controlar a hiperinflação que assolava o país. Para isso, o governo bloqueou o saldo das contas de poupança que excedesse 50 mil cruzados novos, prometendo devolvê-lo apenas após 18 meses, corrigido pela inflação. O choque foi imediato. Muitos cidadãos que depositavam sua confiança no sistema financeiro viram suas economias congeladas, gerando um sentimento de insegurança que atravessou décadas.



O Contexto Jurídico Atual

    Apesar de ter ocorrido há mais de três décadas, as repercussões do confisco ainda são sentidas no âmbito jurídico. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se debruçou sobre o tema em diversas ocasiões, sendo chamado a decidir sobre a validade das compensações propostas pelo governo e o direito dos poupadores de pleitear a correção dos valores.

    A complexidade do tema está no embate entre o poder discricionário do Estado em adotar medidas excepcionais em momentos de crise e o direito constitucional à propriedade privada. O confisco das poupanças suscitou discussões profundas sobre o alcance dessas medidas e a necessidade de proteger os cidadãos de ações arbitrárias, mesmo em tempos de dificuldade econômica.


Lições Aprendidas

    O confisco de Collor deixou uma marca indelével na história econômica do país. A confiança nas instituições financeiras foi abalada, e muitos brasileiros, até hoje, hesitam em manter grandes quantias em poupança ou outros investimentos. O evento também reforçou a importância da previsibilidade nas ações do Estado e a necessidade de uma regulação financeira que proteja tanto a economia quanto o indivíduo.


Reflexos no Cenário Atual

    Olhando para o presente, a lição deixada por esse episódio continua válida. Embora o Brasil não enfrente uma hiperinflação como a do início dos anos 90, o contexto econômico mundial permanece instável. Isso reforça a importância de manter os direitos dos poupadores protegidos e a confiança no sistema financeiro intacta.

    Diante disso, é crucial que as instituições financeiras, o governo e o próprio Poder Judiciário tenham um papel ativo na garantia de que medidas econômicas emergenciais não resultem em prejuízos irreparáveis para os cidadãos. A história nos mostra que decisões abruptas e mal planejadas podem deixar cicatrizes que levam décadas para serem curadas.

    A impossibilidade de confisco da poupança, atualmente, é respaldada pelo princípio da segurança jurídica e pela proteção constitucional ao direito de propriedade, previstos no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988. Qualquer tentativa de intervenção direta nos ativos financeiros dos cidadãos, sem previsão legal específica e em desacordo com os limites impostos pelo Estado Democrático de Direito, seria considerada inconstitucional. Ademais, o artigo 62, §1º, inciso II, da Constituição veda expressamente a edição de medidas provisórias que tratem de matéria relativa à poupança popular, reforçando a impossibilidade de o Estado promover bloqueios ou confiscos nos saldos de poupança por meio de atos unilaterais e provisórios. O confisco ocorrido durante o Plano Collor, regulado pela Lei 8.024/1990, é hoje um exemplo de abuso estatal em medidas emergenciais, e qualquer tentativa de repetição seria prontamente submetida ao controle judicial, com grandes chances de declaração de inconstitucionalidade por ofender princípios basilares, como a legalidade, a proteção à propriedade privada e a dignidade da pessoa humana.


Conclusão

    O confisco das cadernetas de poupança em 1990 não é apenas um capítulo isolado de nossa história; ele serve como um lembrete constante de que a segurança jurídica e a proteção aos direitos dos cidadãos devem ser sempre priorizadas. O desafio atual está em aprender com os erros do passado, garantindo que ações semelhantes não se repitam e que o Estado esteja sempre comprometido com o equilíbrio entre a proteção da economia e a defesa dos direitos individuais.


Juridiquês

    Eventual confisco não poderia ser realizado por medida provisória. É o que se extrai da leitura do art. 62 da Constituição Federal:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
(...)
II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;
III - reservada a lei complementar;
(...)
 
    Mas se fosse ocorrer confisco, qual seria a medida legal? Em primeiro lugar, cumpre observar que não seria por ato do Poder Executivo (Presidente da República), mas sim por medida do Poder Legislativo nos casos excepcionais previstos, ainda assim de forma bastante restrita. Seria, então, por meio de empréstimo compulsório mediante lei complementar, conforme art. 148, CF:

Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:
I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;
II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, "b".
Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.

 

    No caso do confisco de poupança, a Constituição Federal prevê que esse assunto não poderá ser tratado por meio de medida provisória. Isso significa que o governo federal não pode, da noite para o dia, realizar o confisco da poupança, como feito anteriormente pelo presidente Collor.

    Mas existe a possibilidade de se legislar sobre o confisco da poupança (empréstimo compulsório)?

    O empréstimo compulsório deve ser legislado mediante lei complementar, por maioria absoluta dos membros de ambas as casas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), somente nos casos previstos na Constituição Federal. Por maioria absoluta, entende-se o número imediatamente superior à metade1 do total de membros de cada casa (não apenas dos membros presentes na sessão de votação, que pode ser menor). 

    Muito embora o art. 15, III, do Código Tributário Nacional, estabeleça que é permitido cobrar empréstimo compulsório na situação de "conjuntura que exija a absorção temporária de poder aquisitivo", motivo que nos faz afirmar que o instrumento utilizado por Collor foi o empréstimo compulsório, tal instrumento legal não foi recepcionado pela Constituição Federal, vez que as hipóteses legais estão expressamente previstas no art. 148, CF, citado acima.

    Dessa forma, é importante destacar que atualmente não existe possibilidade de confisco de investimentos financeiros em conta de poupança por parte do governo federal por meio de medida provisória. Essa preocupação é infundada, uma vez que legislar por meio de lei complementar dependeria de grande mobilização legislativa e estaria, ainda, sujeita à regra do art. 150, III, c, CF, devendo obedecer à anterioridade de 90 dias da publicação da lei (caso não fosse situação de guerra ou calamidade pública), o que geraria grande caos social.

    Sobre a anterioridade, vejamos leitura do citado artigo:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
(...)

    Por isso, os investidores podem ficar tranquilos em relação a esse assunto e continuar investindo em suas contas de poupança sem nenhum receio de confisco por parte do governo federal ou do legislativo. É importante destacar, no entanto, que é sempre recomendável buscar orientação de um profissional especializado antes de tomar qualquer decisão de investimento.

    


1 RE 68.419/MA.

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